desequilíbrio coletivo
quando nossa mente é bombardeada de notícias, e nós esperamos a nossa vez.
O alarme toca de segunda a sexta às sete horas da manhã. No espaço entre quarto-banheiro-cozinha, um corpo desaparece. Uma canoa é colocada n’água para ir em busca de isolados. Um telhado cai. Frigideira no fogão, o ovo frita. Nesse meio tempo, uma casa é bombardeada em Gaza, e a proposta que reduz as reservas florestais em fazendas na Amazônia. O personal manda mensagem, treino daqui a pouco, não esqueçam, animação para hoje, treino pesado, energia lá em cima, queimar tudo. Amanhã é a aula de yoga, tem que colocar o tapete no carro, respirar fundo e pausado, concentrar. Uma livraria cheia de livro em cima de móveis, móveis que serão comidos pela água, pela água que chega à altura de uma mesa, por uma água que chega à altura de uma casa, de um posto de gasolina, inspira, expira, não esquecer o Savasana. Atraso para o trabalho, só dez minutinhos porque no meio do caminho teve uma manifestação, sindicato que luta por melhores condições, não vejo o que é. A mãe liga, um pedido de exame médico – algo de catarata? Remédios, pouco dinheiro. Dinheiro. Dinheiro. Uma pessoa perde tudo. O sogro manda mensagem chamando para uma vinícola que acabou de abrir, e uma amiga convida para uma festa no fim de semana. Parece ótima. A porra do cavalo em cima do telhado. No outono, o pôr do sol parece ser pintado a mão, corro no parque. Esse pace que não vai parar frente. Um barco que vai, leptospirose. Uma taça de vinho no fim do dia para aliviar. Uma vakinha falsa. Um e-mail lembrando do clube do livro do qual você se inscreveu, uma história que envolve Brasília, milicianos, jogo do bicho. Um romance e uma parte engraçada. Você ri. No grupo da família, uma fake news sobre mudanças climáticas. Tá calor para caralho, você liga o ar condicionado. Um push no celular: as surpreendentes fontes de gases do efeito estufa. Hailey Bieber está grávida. Os obstáculos para o cessar-fogo. A água que ferve. Mais um cafezinho, sem nem por quê. Deve ser vício. O médico dizendo que não pode, não pode, faz mal, dá gastrite. A gastrite e a queda de cabelo. Vem do estresse. Estresse por quê? Tem que investigar as causas. Uma meditação basta. Onde ficam as barragens com risco de rompimento no Rio Grande do Sul. No fim de semana, tem aula de canoa havaiana. O professor repete as ordens: não olhar para nada a não ser a pessoa a sua frente. Hip. O grito que indica que você deve trocar o remo de lado. Hip. Canoa no Lago Paranoá. Remo. Canoa em ruas alagadas de Porto Alegre. Canoas. Hip. Viu o último filme da Zendaya? Hip. A Trend do TikTok. Hip. Bruno Mars, Madonna. Hip. Aquecimento global. Ebulição global, alguém corrige. Hip. Uma fila quilométrica com doações. Hip. Quando será nossa vez? Nossa casa? Nosso bairro? Hip. A megasena que acumula. Dinheiro. Gente que perdeu tudo. Hip. Esse chocolatinho depois do almoço não faz bem. Hip. Câncer em pessoas jovens estão aumentando. Hip. O mundo colapsa. Hip. O novo filme da Anne Hathaway. Hip. Hip. Ouço num podcast, já era, estamos fodidos. Hip. E quando será minha vez? Hip. Hip. Minha vez, hip. Aula de inglês, ingresso para o show, hip. hip. Não tem futuro, hip, hip. E o futuro? hip, hip. E minha carreira? Hip. Hip. Hip. Cadê essa energia, turma? Hip. Hip. Que tal tomar um suplemento para melhorar? Hip. Hip. Hip.
Essa carta está há um tempo na aba de rascunhos. Não sei porque, está lá. Só não fazia sentido. Hoje não era dia de newsletter – era para ter enviado sábado passado. Mas nada tem feito muito sentido mesmo. Me pergunto o tempo todo: com qual motivo? Por que? Qual a melhoria disso nesse momento? Não tem. Fiquei pensando no que escrever quando o mundo real impacta dessa forma, e pareceu tão pequeno falar sobre algo, sendo que estou tão longe, tão distante, acompanhando as tragédias por meio de uma televisão, segura em meu sofá. Porém, aí lembro sempre que a tragédia é global, e ainda que pareça distante, vai sempre chegar nossa vez.
Quando escrever ou fazer arte não faz sentido em tempos como esse, lembro de Bertolt Brecht:
“In the dark times
Will there also be singing?
Yes, There will also be singing
About the dark times”
Em português:
“Nos tempos de escuridão
Também há de se cantar?
Também há de cantar:
Os tempos de escuridão”.
E nós cantaremos os tempos de escuridão.
Nesse momento, compartilho, geralmente, o que eu ouço, vejo, leio. Mas, aqui, vou compartilhar textos de escritoras que também tentaram dar voz a tudo o que sentiram nos últimos tempos. Tendo vivido longe ou perto.
escreveu um texto que me comoveu do início ao fim. Leia “A Casa Alagada”. escreveu “Deja-vu”. escreveu dois textos que ressoaram em mim por muito tempo depois: “O amor afogado em uma enchente” e “A Cidade submersa & a cidade submersa”. em “Temos que começar a dizer: todos nós somos ambientalistas”.E claro: doem, ajudem o Rio Grande do Sul.
é aflitivo ver que vamos vivendo de tragédia em tragédia sem que nada seja efetivamente feito para impedi-las.
Deborah, mesmo atordoados precisamos resistir e prosseguir, não é? Vou aproveitar estes dias para colocar 'coisas em ordem'; vou tentar produzir alegria ao ler e ouvir tudo o que possa me asserenar o coração. Sei que isso poderá ajudar os aflitos do mundo inteiro!