solidão
Há uma pintura que você provavelmente conhece: uma mulher sentada sozinha em uma mesa numa lanchonete à noite observando a xícara de café em mãos. Veste um casacão verde, e na cabeça, um chapéu amarelo. Há uma cadeira na frente dela que não está ocupada. Aliás, ela não parece esperar por ninguém, e em todo o ângulo de visão da pintura não há outras pessoas retratadas. A mulher está só.
A cena poderia ser vista talvez em qualquer café de cidade grande ou pequena, com suas devidas vênias, apenas substituindo a atenção da jovem da xícara para um smartphone. Poderia ser o retrato de uma mulher no nosso século, em meados dos anos 23, mas a imagem se chama Automat, e foi criada por Edward Hopper em 1927. Hopper, o artista da solidão.
Gosto dessa pintura pela mistura de sentimentos que ela evoca: o efeito combinatório entre a angústia, o vazio e a identificação. Quase um retrato dos nossos tempos, um século antes. Todas as vezes que me deparo com essa imagem, tento responder às perguntas: será que a mulher gostaria que alguém se sentasse com ela à mesa? Será que está triste? Está em modo contemplativo ou apenas solitário? É quase o meme: afinal, liberdade ou solidão?
Não foi à toa que Hopper pintou a solidão. O artista viveu a primeira guerra, a depressão de 29 e a segunda guerra mundial. Imagino que deve ter sido difícil viver na primeira metade do século 20, com a morte à espreita, e a incerteza sobre um futuro que não parecia promissor. Hopper, então, pintava o que via, ou melhor, talvez pintasse o que sentia. Em todas as telas do artista, que se considerava um impressionista e não um realista, estão apenas personagens solitários, ainda que acompanhados.
É o que acontece, por exemplo, no quadro Nighthawks (1942), que você também deve conhecer. A tela retrata pessoas sentadas num restaurante no centro de uma cidade durante a noite. Não parecem conversar entre si. Estão sós, apesar de não estarem sozinhos.
Não consigo contar nos dedos quantas pessoas já me disseram como têm medo da solidão. A maioria tem menos de trinta anos. São pessoas jovens, conectadas, que seguem ou tem milhares de seguidores nas redes sociais. Pessoas que têm os pais vivos, ou que namoram ou são casadas. Pessoas que trabalham num lugar fixo presencialmente, ou que sempre aparecem em fotos com dezenas de outras. São pessoas que sempre estão acompanhadas, mas que vêm na solidão um temor real.
Sempre tentei entender esse medo que parecia tão irracional nos outros. Quase como que tentando destrinchar o porquê uma pessoa que parece ter tantos amigos tem tanto medo de estar só. É possível que elas tenham receio de perder essa sensação de pertencimento, claro. Ou seja, são felizes e completas agora, e por isso, sentem angústia de, um dia, perderem tudo. Mas, não sei se essa é uma verdade universal. Talvez, essas pessoas, na verdade, já se sintam sós, ainda que disfarcem. Como nosso mundo é irônico: nunca estivemos tão rodeados de pessoas, e nunca estivemos tão solitários.
Há quem ponha a culpa na pandemia, nas redes sociais, na tecnologia, ou nesse sentimento que Hopper talvez conhecesse tanto: o de que viver tantos momentos históricos tenha mesmo esse efeito individualizador em nós. Mas, se tantas pessoas se sentem sozinhas, por que não juntarmos esforços e nos unirmos?
Também é uma verdade conhecida que a solidão não tem a ver com companhia. É possível, por exemplo, estar num lugar abarrotado de gente, mas sentir a angústia do não pertencimento. Ainda que você goste das pessoas que estão com você. O mesmo acontece no mundo virtual: centenas de seguidores se tornam números; estamos a um clique de alcançar amigos, de interagir com estranhos, e nunca estivemos tão próximos, mas tão distantes. Conectados, mas sem conexões.
Estamos tão individualizados em nossos próprios universos, atolando nossos dias de afazeres, nossas mentes de preocupações irreais, nossos dias com mais um curso ou mais uma atividade física, apenas para nos afastar da solidão. Como ligar a tevê para ouvir um barulho. Só que a tevê, nesse caso, seria os afazeres da vida, e o barulho é só um disfarce para não pensarmos muito sobre nossas emoções. Não nos sentimos sós quando não temos tempo para sentir de modo algum.
O mundo engole, e muitas vezes, mesmo quando estamos ali, presentes fisicamente, rodeados de boas pessoas, nossos pensamentos nos traem; nos levam para outras preocupações, para outros locais; para esse mundo de problemas secretos, de situações que não contamos para ninguém; para esse planeta de opiniões que não compartilhamos; de angústias que, pelo medo de incomodar os outros, tornaram-se tão nossas. Então, como podemos nos sentir menos sós? Qual é o oposto da solidão?
Não é a presença, nunca é. Temos pessoas, amigos, parentes, mas ainda estamos sós. Acredito que o oposto da solidão é a certeza. Enquanto uma mora na dúvida, mora no medo de incomodar, mora na hesitação, na angústia e no não-compartilhar; a certeza nos garante que estamos realmente sendo vistos e ouvidos. Que nossas faltas estão sendo notadas, e que há uma mão junto a nossa. A certeza nos mostra que por mais que estejamos desacompanhados, temos com quem contar. Quando temos certeza, aí sim, já não estamos mais sós.
tem muita gente boa fazendo coisa por aí
Para ver: recentemente, vi o filme Beco do Pesadelo (2021) do Guillermo Del Toro, que foi indicado ao Oscar do ano passado. O filme conta a história de um vigarista que descobre um talento para manipular as pessoas e passar a fingir ser uma figura clarividente. Apesar da sinopse do filme contar muito mais do que isso, tenho a impressão de que tudo a partir daí é spoiler. Queria ter visto ele antes, no ano passado, acho que teria torcido por ele na corrida. Está disponível no Star+.
Para ouvir: A apresentação do Ludovico Einaudi no iTunes Festival há dez anos.
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