Como fazer um discurso para o Oscar
45 segundos de fala, dois discursos da última edição e você? Falaria o quê?
Crônica
Palco. Ouço com atenção discursos do Oscar, uma cerimônia chatérrima que assisto anualmente — com ou sem filmes brasileiros na competição. Se você me perguntar, não sei responder porque faço isso. Nem a parte de assistir à premiação, nem a parte de pedir silêncio na sala, por favor, para escutar o que aquela pessoa, provavelmente branca e norte-americana, tem a falar para milhões de pessoas em, em média, 45 segundos (exceto, é claro, se você for o Adrien Brody).
Gosto de saber o que as pessoas elencam como prioridade em um discurso de menos de um minuto. Imagina você nessa posição: um palco, um microfone, milhões de telespectadores. Permissão para fazer ou falar qualquer coisa, ainda que o protocolo seja quebrado. Ninguém vai saber o que virá até você subir no palco. O que você diria? I want to thank the Academy, my mom… Uma lista infinita de gente para agradecer. Mas, será que esses momentos de atenção valem para você agradecer, sei lá, uma quantidade de pessoas que ninguém conhece?
Não quero parecer ranzinza. Agradeça sim a sua mãe, ao seu pai, a sua professora da terceira série — primeira pessoa que escreveu em uma redação sua “como você é criativa!”. Vá em frente. Mas, o que me faz gostar de assistir discursos é a expectativa de alguém ir na contramão do esperado. São 45 segundos, em média, antes daquela música começar a tocar e se você for um Ninguém, vão desligar o microfone antes de você dar a carteirada do Eu já fiz isso antes. Desculpe, citei o Adrien Brody de novo, nada contra.
Então, por que usar todo o tempo para citar nomes, se você pode dizer: “Há um caminho diferente, uma solução política sem supremacia étnica, com direitos nacionais para ambos os nossos povos. E devo dizer, enquanto estou aqui, que a política externa deste país [Estados Unidos] está ajudando a bloquear esse caminho”.
É preciso ter coragem para ir no país dessas pessoas e denunciar a ação deles em relação a um genocídio que acontece em frente aos olhos de todo o mundo. Quem fez esse discurso foi Yubal Abraham, jornalista israelense e um dos diretores de No Other Land (Sem Chão), que ganhou a categoria de Melhor Documentário.
O filme é dirigido por dois diretores palestinos, Basel Adra e Handam Ballal, e dois israelenses, Yuval Abraham e Rachel Szor, e mostra a destruição de Masafer Yatta pelo Exército israelense. Ao receber o prêmio, os diretores discursaram contra as ações militares de Israel na Cisjordânia e em Gaza e denunciaram o genocídio. Eles agradeceram à Academia, é claro, mas também se solidarizaram com os reféns israelenses feitos pelo Hamas, denunciaram a limpeza étnica, e ainda colocaram fogo no parquinho ao citar os EUA. Quem sabe sensibilizou alguém.
Em defesa das salas de cinema.
Outro discurso que me chamou atenção naquela noite, apesar de não denunciar nenhum genocídio político, foi o do Sean Baker, quando ganhou Melhor Direção por Anora. Em sua fala, o diretor defendeu que a experiência cinematográfica está ameaçada e que é preciso formar uma nova geração de pessoas que amam o cinema.
Sei que quando comparamos os dois discursos, o do Sean pode parecer um pouco infantil. Mas, gosto dessa defesa: vamos ocupar as salas de cinemas. Me fez lembrar de um outro filme que gostei muito e que foi esnobado pela Academia há poucos anos: The Fabelmans, dirigido por Steven Spielberg. Uma das primeiras cenas do longa mostra Sammy Fabelman se apaixonando por filmes e pelo cinema depois que os pais o levam para assistir The Greatest Show on Earth. Depois desse momento transformador, Sammy começa a fazer os próprios filmes em casa. Nessa mesma relação, também lembrei de mim, quando decidi inventar e escrever uma história de cinco páginas, aos nove anos, sobre um grupo de amigos que, sem querer, entravam em um computador, e tinham que completar as etapas de um jogo para sair de lá. Algo que escrevi depois de assistir Pequenos Espiões 3 nos cinemas.
Há poucas coisas que se comparam à imersão de duas horas dentro de uma sala onde não há (ou não deveria haver) celular para nos roubar a atenção. Um espaço-refúgio. A sensação de ser transportado de um lugar a outro, para dentro de uma história e para uma vida completamente diferente. Quando entramos, fazemos esse pacto com os cineastas: a de entraremos naquele faz de conta; naquele jogo até que todas as etapas acabem.
Não é à toa que muitas salas ainda têm aquelas cortinas ao lado da tela, como se o show estivesse prestes a começar. “Onde nos apaixonamos pelo cinema? Nos cinemas”, pergunta Sean Baker.
Você pode me dizer que ingresso de cinema é muito caro e que o streaming é mais acessível, principalmente para as pessoas que têm dinheiro, e eu vou concordar. Um discurso perfeito também contemplaria a desigualdade social do acesso às artes. Precisamos defender a acessibilidade do cinema — seja essa acessibilidade econômica e geográfica, ou por meio de sessões para pessoas com deficiência.
Você também pode me dizer que não há nada que pague pelo conforto da sua casa para assistir um filme, e eu vou concordar em partes. Amo streamings, assino vários. Adoro séries, revejo filmes antigos, ou lançamentos que perdi. Conheço culturas de outras nacionalidades, longas que não vão para a telona. Mas, é preciso que o cinema ainda exista e sobreviva.
Nada supera a mágica de você estar em uma sala e sentir a energia do coletivo. Você ri em conjunto. Enoja-se em conjunto. Surpreende-se em conjunto. Podem me considerar uma sonhadora, mas ter acesso a esse tipo de arte é o que forma uma geração de jovens artistas. E para que esses jovens cheguem até aos cinemas, às exposições, às galerias, aos shows, é preciso que as cidades se transformem. Isso faltou na fala de Sean Baker.
É primordial lembrarmos que discursos são potentes. Quando proferidas a outras pessoas, as palavras têm poder grandiosos e destrutivos. Nunca pense que frases são apenas frases ditas da boca para fora. São carregadas de símbolos, de história, de desejo. Se, um dia, você tiver 45 segundos, lembre-se disso: no momento de falar, tente alcançar alguém; se você conseguir, esses pequenos segundos podem ser capazes de mudar muita coisa.
Se você fizer um discurso para o Oscar, essas são minhas dicas:
Não invente ser de uma minoria e muito menos invoque um passado de imigrantes, apenas quando lhe convém invocar.
Não ultrapasse cinco minutos.
Não cante, mesmo se você tiver ganhado por Melhor Canção Original.
Não perca seu discurso em papel momentos antes de subir ao palco.
Alfinete uma potência mundial.
Treine no chuveiro.
Outros discursos que gosto
Michelle Yeoh: a primeira mulher asiática a ganhar o prêmio de melhor atriz por Todo Em Todo Lugar ao Mesmo Tempo acenou “a todos os meninos e meninas que se parecem comigo assistindo hoje à noite, isto é um farol de esperança e possibilidades”.
Bong Joon-ho: o diretor sul-coreano de Parasita fez um apelo ao país que acha que tudo tem que ser na língua deles: "quando vocês ultrapassarem apenas alguns centímetros da barreira das legendas, vocês descobrirão tantos filmes incríveis".
Spike Lee: quando ganhou o prêmio de melhor roteiro adaptado por Infiltrado na Klan, ele homenageou os ancestrais que “ajudaram a construir este país hoje, junto com o genocídio de seus povos nativos”.
Lupita Nyong'o: no discurso de melhor atriz coadjuvante por 12 anos de escravidão pediu para que esse prêmio lembre “a cada criança que não importa de onde você é, seus sonhos são válidos”. Porque eu gosto de gente que defende sonhos.
Mas eu quero saber de você: quais são seus discursos preferidos? quais que você acha memoráveis? Me conte aqui embaixo! Você também pode sempre responder a este e-mail.
Notas sobre essa edição
Quando eu comecei a escrever essa edição, Hamdan Ballal, o cineasta palestino e codiretor do filme No Other Land ainda não havia sido sequestrado por criminosos israelenses na Cisjordânia. Escrevo isso com o alívio de saber que, ainda antes de soltar essa edição, ele também foi libertado. Não sem antes ser agredido e torturado.
Eu sei que a última edição da newsletter foi em 9 de fevereiro, o que me dá uma pausa de quase dois meses em uma frequência que deveria ser quinzenal. Mas, precisei repensar a newsletter e definir algumas estratégias, o que me custou tempo e dedicação. Vou mudar algumas coisas por aqui, mas você vai acompanhar aos poucos. Acho que você já viu algumas mudanças. Se você tem 45 segundos e quer me ajudar a melhorar essa newsletter para que ela possa chegar a mais pessoas, pode responder duas perguntas nesse formulário? Gostaria de saber o que vocês acham dessa newsletter. É anônimo.
Pausa para divulgação…
Se você é de Brasília, vem conhecer a
, uma newsletter com indicações e programações culturais que acontecem na capital federal. Um projeto incrível que foi lançado em março. Eu e mais três amigas: Priscila Calado, Karine Canal ( ) e Ana Rüsche ( ). Assinei a última edição e dei dicas sobre trilhas para quem gosta desse tipo de atividade.Tenho pesquisado processos criativos alheios há meses e um dos que eu gostei de encontrar foi o do David Lynch. No livro “Em Águas Profundas”, ele fala sobre meditação transcendental e processo criativo. Fiz até um vídeo sobre isso.
Enquanto você recebe essa carta, eu estou em São Paulo, a caminho do Autódromo de Interlagos. Reclamei do line-up desta edição do Lollapalooza, mas uma das minhas bandas preferidas atualmente estará lá, e senti que não dava para perder. Vem conhecer Parcels.
do Substack…
Momento polêmico: Achei justo o prêmio de Melhor Atriz para a Mikey Madison. É óbvio que estava torcendo pela Fernanda Torres e estaria torcendo independentemente. Anora não foi um filme que eu gostei, muito menos que eu odiei, só achei que o roteiro se perdeu na narrativa. Não faço aqui uma crítica em um tweet, apenas saio em defesa de uma boa atuação. Foi uma ótima atuação. Muito longe da relação que fizeram nas redes sociais, comparando a Mikey com a Gwyneth Paltrow em 1999. Sobre esse assunto, deixo esse texto da Bárbara, do
:Também gostei bastante dessa lista de filmes favoritos que concorreram ao Oscar
.Quem escreve
Percebi que nunca me apresentei por aqui nem mesmo depois que furei um pouco da bolha e recebi algumas inscrições. Então, oi! Eu sou a Deborah, sou escritora e roteirista de podcast. Esse é realmente meu trabalho, meu “ganha pão”: eu ajudo a criar podcasts para organizações — às vezes, dou a ideia e mostro a estrutura; às vezes, escrevo o roteiro; às vezes, faço tudo isso e ainda apresento.
Pelas manhãs, escrevo romances que, espero, um dia, vejam a luz do sol. Gosto de escrever e pesquisar sobre o mal-estar da juventude e as dificuldades de “adultecer” em uma sociedade política e economicamente instável. Moro em Brasília, mas sou de Belém e, sim, isso significa que eu só como açaí de verdade. Você pode me acompanhar no Instagram, onde eu compartilho mais sobre minhas pesquisas em processos criativos alheios. Também comecei a pesquisar e estudar cinema (de forma independente) — e falo disso de vez em quando por aqui.
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Casa é privilégio: como criar um espaço que é a sua cara não algo superficial.
Perdida no personagem: Será que estamos perdidos no personagem ou só temos interesses diversos?
Te encontro na próxima edição?
Que baita exercício esse que vc propôs!
O problema de ver um filme no cinema é que o coletivo anda cada vez mais individual. E mesquinho. Falar no cinema, ligar (a porra do) celular, levantar e sair e voltar (mais de uma vez), comentários altos (e idiotas). É osso. E nãp venha me dizer que no cinema de arte e alternativo não tem isso pq as vezes tb tem!
Sobre o discurso... bom, não tenho nenhuma ideia. Mas tenho uma ideia para os publicitários que venderia horrores: fazer uma embalagem de shampú em formato, tamanho e cor da estatueta do Oscar para as pessoas pegarem na mão durante o banho e discursarem!