perdida no personagem
Será que estamos perdidos no personagem ou só temos interesses diversos?

Estudei em uma escola privilegiada durante o ensino fundamental. Do tipo que promovia passeios como atividades extracurriculares e enfiava crianças dentro de um ônibus para conhecer algum lugar, enquanto elas cantavam Barata da Vizinha e outras pérolas musicais. Foi assim que conheci o Lixão de Brasília (agora fechado). Se me concentrar bem, ainda consigo me lembrar do cheiro cadavérico do lugar, como se eu ainda estivesse lá lutando para ser forte e não tapar o nariz com a gola do uniforme. Visitei também a Companhia de Saneamento, a Caesb; o Hospital Sarah Kubitschek para assistir palestras sobre acidentes de trânsito e o perigo das cachoeiras; e outro lugar inesquecível: uma sala de controle de tráfego aéreo, onde o professor ordenou, com uma voz que misturava ameaça e súplica, que nem sequer um espirro fosse dado, e que todos os alunos (com cerca de dez anos) ficassem em silêncio, para presenciarem o que, segundo ele, seria o trabalho mais estressante do mundo (à época).
Além das profissões que eu prometi não seguir quando crescesse, como por exemplo, ser controladora de tráfego aéreo dos anos 2000, me apaixonei por carreiras que quase competiram com a minha escolha muitos anos depois, já no vestibular. Quando visitamos uma exposição itinerante sobre a extinção de dinossauros em um shopping de Brasília, uma das nossas funções lúdicas era montar um grupinho e, com uma espécie de mini espanador remover a areia de um balde, escavando com cuidado, até encontrar ossos de dinossauros. Me diverti tanto vendo a areia se espalhar e surgirem ossinhos minúsculos (de plástico, obviamente) que decidi, naquele dia, ser arqueóloga quando crescesse. Uma promessa parecida com a qual fiz quando visitamos o planetário: saí de lá jurando que me formaria astrônoma.
Mudei de ideia várias vezes antes e depois desses passeios. Era nessa época, por exemplo, que a Nanda, minha melhor amiga da terceira série, levava kits de alquimia infantil para brincarmos juntas no recreio — momento em que nós duas dizíamos que nos tornaríamos alquimistas, seja lá o que isso significasse. O recreio acontecia logo antes das aulas de artes, onde eu já tinha me prometido ser uma pintora de quadros. Anos mais tarde, conheci um professor divertido que me ensinaria sobre briófitas e pteridófitas, e, quando minha nota foi a maior da sala em botânica, decidi ser bióloga.
Meus interesses são tão diversos que, quando disse ao meu companheiro sobre minha vontade de trabalhar em um museu algum dia, ele me apoiou e perguntou em que época eu faria isso: se antes da minha formação em yoga ou depois da minha faculdade de nutrição? Virou uma piada interna.
Não é como se eu já não soubesse, desde pequena, que queria dedicar minha vida a escrever histórias. Nada disso. Mas, sentia que meus interesses não cabiam dentro de mim e nem dentro de uma vida. Só me restava acreditar num post-mortem com biblioteca e wifi. Ainda acredito.
Com frequência, me sinto perdida no personagem. Nenhum foco, apenas interesses tão múltiplos que, muitas vezes, nem sequer têm um fio condutor. Num mundo onde nos dizem que nós devemos focar em ter apenas um único nicho, como se nossas vidas fossem uma aula de marketing e nossas relações públicos-alvo, ter interesses tão diversos me faz sentir como se estivesse atrasada para ir em algum lugar — um lugar que nem sei como chegar, nem se quero ir.
Nesse sistema em que nos ensinam que nossos interesses devem ser reduzidos a apenas uma única coisa para que nossa performance seja a melhor, a mais rentável, para que possamos nos vender como autoridade em um assunto, e a monetização seja o nosso único propósito, assim como todos nossos interesses tenham alguma utilidade, nos esquecemos que grande parte dos nossos ídolos do passado eram seres múltiplos — filósofos e pintores; por vezes ainda escritores; quem sabe bancários na maior parte do tempo; provavelmente músicos, e, eu ainda poderia apostar que sociólogos.
Lembrei disso quando voltou a viralizar pelas redes sociais a corrente que pede que você preencha sua profissão atual, uma escolha racional de profissão, uma decisão emocional, algo que você nunca faria, e uma parte estranha de você. Gosto de ver a parte estranha das pessoas, que as tornam esféricas e complexas. Os dentistas que seriam cantores; os jornalistas que seriam chefs de cozinha; a turminha da TI que viraria DJ.
As regras das redes sociais nos exigem um perfil profissional segmentado. Quase que formando bolhas. E, segundo ouvi de certos gurus das redes sociais: você deve limitar as suas postagens a, no máximo, três assuntos, para que você não confunda seus espectadores, ou melhor, seus seguidores. Você deve ser autoridade em apenas uma coisa, não uma colcha de retalhos ambulante. Como se nossas vidas pessoais ou profissionais devessem se reduzir a um único tópico, quando na verdade, o que nos torna singular são nossos gostos peculiares e a mistura deles em uma panela de pressão. Nossos olhares e opiniões são diferentes porque nossas experiências, estudos e bagagens também são diversos. O que aprendemos com nossas curiosidades multifacetadas nos transforma nos seres únicos que somos. Muitas vezes não encontrar um único interesse me fez pensar que eu estava perdida. Quando, na verdade, é o oposto: me encontrei em cada lugar.
Para ver:
é uma das minhas pessoas favoritas da internet, e um dos vídeos que ela soltou recentemente trouxe essa análise sobre a palavra vulgar, e como ela reagiu depois do professor dela de mestrado, em Paris, dizer que ela estava vulgarizando a arte. Achei tão bonito que trouxe que é uma das minhas recomendações dessa edição da newsletter. É um vídeo curto, vale a pena dar o play.Para ouvir: senti muitas coisas ao ler Tudo é Rio, da Carla Madeira, pela primeira vez durante a pandemia. Mas, se você é escritor, ou um leitor atento, ou pesquisador, ou apenas amante da literatura, e quer entender as complexidades de uma narrativa, eu sugiro o episódio do videocast (ou podcast, para quem prefere em áudio como eu) do Livros e Listas sobre esse livro. É uma aula de verdade.
Para ler: já cansei de recomendar Esse Post Precisou Ser Removido, da Hanna Bervoets, publicado pela Editora Rua do Sabão. Mas se você ainda não me viu recomendando esse livro curto, fica aqui a publicação no Notes:
E você já sabe: se você gostou dessa edição, se você gosta do que eu escrevo, compartilha esse texto com alguém que você conhece, para que eu chegue a mais lugares? E me conta o que achou! A gente continua essa conversa!
Deborah, obrigada por encontrar a solução para a curiosidade infinita! Minha nova crença religiosa é o post-mortem com biblioteca e wifi 🙌🏼💖
Me identifiquei muitooooo com a multiplicidade incansável de interesses 😅