inteligência artificial
Como uma boa brasileira em tempos de internet, estou completamente obcecada por inteligência artificial. Minha mais nova fixação dentro desse tema é tentar entender como robôs, ou seja lá o que são esses seres, podem gerar fotografias de pessoas que não existem. Em janeiro deste ano, o desenvolvedor Miles Zimmerman utilizou um programa de IA e deu a ele um comando simples: pessoas em uma festa noturna. O resultado foi uma série de fotos assustadoramente reais de pessoas fictícias. Rostos, roupas, corpos e expressões: nenhum elemento presente na imagem era de fato real, mas estava ali. O caso ficou conhecido como A Festa que Nunca Aconteceu.
Num dos retratos, estão quatro mulheres. Duas delas em primeiro plano, fixando os olhos em direção à câmera fictícia. Elas têm seios, expressões e modos de se vestir distintos. É como se tivessem personalidades, nomes, endereços, gostos musicais, animais de estimação. Como se nós, do outro lado do computador, as conhecêssemos. Como se fossem nossas colegas de faculdade, trabalho ou até aquela influenciadora digital que seguimos nas redes sociais. Pensando bem, as fotos poderiam ter sido tiradas em uma festinha na casa de um dos estudantes da UnB no Lago Sul por uma dessas máquinas analógicas que estão na moda. Exceto que não existem câmera, festa ou pessoas. É uma imagem gerada, inclusive, por alguém que não é real, através de uma câmera simulada.
O assunto “inteligência artificial” me causa uma mistura dicotômica entre curiosidade e apreensão. O receio se origina no entendimento de que ficou ainda mais difícil distinguir o que é real e o que não é. Eu sei, passado os primórdios da internet onde as imagens manipuladas, por exemplo, eram constrangedoramente falsas, ficou mais desafiador tentar acertar se algo é enganoso ou não. Mas, até então, ainda contávamos com um quê de obviedade, como uma carta na manga. Pense na manipulação de imagens como um truque de mágica. Se prestarmos atenção aos pormenores, possivelmente vamos descobrir as inconsistências. Vamos perceber a artimanha, o detalhe que faz tudo parecer real, mas não ser. Então gritamos o eureca: isso é falso.
É como ver o Papa usando um sobretudo puffer branco alongado. A primeira reação é o estranhamento. O Papa usaria um sobretudo dessa forma? Por um momento, você poderia pensar que sim, claro, é possível, papas também sentem frio. Mas, há uma evidência da mentira ainda assim. Se nos atentarmos às minúcias, às particularidades, vamos bater o martelo: o casaco em si poderia ser real, mas uma jaqueta puffer estilosa igual às estampadas nas passarelas? Eureca. Isso é falso.
Mas, agora, as imagens por IA trouxeram uma discussão maior do que essa. Elas não são montagens de fotografias já existentes anteriormente. Uma manipulação com o intuito de enganação. Agora, não nos perguntamos apenas se o que estamos vendo é real, mas se quem criou aquilo também é. A irrealidade, hoje, é tão presente quanto nossos próprios corpos físicos. Ficção transborda os contornos da realidade, esparramando-se pelos espaços da existência concreta. Ficou difícil diferenciar o que somos nós ou eles — os que não existem.
Sempre defendi que o nosso trunfo na guerra contra os computadores era a nossa criatividade. Matemática e física: os robôs são muito melhores e rápidos do que nós. Biologia, química e geografia, provavelmente eles também ganham. Mas, criatividade? Isso vem da alma, das histórias de vida, das bagagens que carregamos com o tempo, das referências, do que nós aprendemos fora da tela. Como robôs ou computadores podem ser criativos sem estarem vivos? Sem se apaixonarem? Sem terem tido o coração partido? A criatividade é um eterno roubar da realidade — roubamos tudo ao nosso redor, diálogos, frases, histórias dos outros. Como os computadores podem imaginar sendo que sequer podem existir no mundo lá fora? A criatividade é uma especialidade de quem aprendeu a viver.
O assunto não é novo, apesar de ter ganhado novos contornos recentemente. Em 2020, alguns pesquisadores pediram para a inteligência artificial imitar o estilo linguístico de Guimarães Rosa. No desespero para diminuir a magnitude do gesto, ouvi uma escritora afirmar que o robô falhou no resultado, e que era sim possível distinguir o texto produzido pelo computador e o escrito por Guimarães. Um trunfo da humanidade. Como se a escritora quisesse dizer. Viu só? A arte bem-feita é impossível de ser copiada.
Mas, se tem algo que eu aprendi com a tecnologia de uma forma geral com o passar dos anos é que os computadores são realmente bons em atualização de softwares. Aprimoramentos, melhorias para o usuário. Opa, pera aí, você não gostou da versão do meu texto de Guimarães Rosa? Pois que tal baixar a atualização 2.0 Faster Download e ter uma versão atualizada e mais bem avaliada pelos usuários?
Sendo assim, qual nosso trunfo, afinal? O que há de tão humano em nós que não pode nos ser roubado nunca? Não tenho respostas. Sei que, neste momento, as máquinas não são (ou estão) perfeitas. Na Festa Que Nunca Aconteceu, há várias outras fotos em que as pessoas têm seis dedos, por exemplo (se você reparar bem nos detalhes…). Mas, isso significa que temos tempo? E teríamos tempo de quê, exatamente? De nos tornamos melhores do que elas? De mitigarmos os efeitos catastróficos esperados? Beliscões não nos trarão de volta para a realidade. A percepção é que o mundo implodiu — realidade, imaginário, montagens, concreto, online, offline, tudo virou uma coisa só.
Recentemente, li o ensaio “Sobre os ombros de Gigantes”, do escritor norte-americano Ray Bradbury (1920-2012). No texto, Bradbury discorre sobre a produção de histórias de ficção na humanidade. Para ele, o homem é um solucionador de problemas; e isso se faz com ficção científica. Ou seja, se temos um problema e o resolvemos dessa forma, então logo a ficção se torna um fato científico.
É como dizer que tudo, algum dia, já foi ficção científica — escadas rolantes, aviões, videochamada, inteligência artificial. O que Bradbury defende é que as histórias de ficção científica não são um escapismo puro e simplesmente. Pelo contrário: são uma tentativa de resolver problemas ao fingir que desviam o olhar deles.
“Parece que todos somos filhos da ficção científica, sonhando com novas maneiras de sobreviver”. (Ray Bradbury, 1980).
Ele também argumenta que o homem é um solucionador de problemas porque é um guardião de ideias. Ou seja, imaginamos tanto, confabulamos tanto, que estamos sempre criando soluções para problemas do mundo. Fantasiar é ficção científica. Pôr em prática é fato.
Se somos mesmo solucionadores de problemas, como diz Bradbury, bom, dessa vez, há um belo dum pepino para resolvermos. Mas como saná-lo? Criando limites? E que limites seriam esses? Como tornar perceptível a diferença entre o verdadeiro e o irreal? Talvez esse seja o momento de pensarmos mais além. Confrontar a ficção científica que é a inteligência artificial com uma outra ficção científica que ainda não criamos. Talvez seja esse o momento de pensarmos além dos robôs, além dos computadores. Elaborar sim novas maneiras de sobreviver, mas mais do que isso: garantir a existência de um trunfo na guerra simbólica contra as máquinas, e arquitetar formas de continuarmos verdadeiramente humanos — mais humanos do que as máquinas parecem ser.
Como inteligência artificial é um assunto que realmente tem me interessado muito, preciso saber de você: em qual grau isso é preocupante? acha mais excitante ou preocupante? tem alguma área da inteligência artificial que te preocupa mais? Compartilha comigo>
tem muita gente boa fazendo coisa por aí
Para ler: Relembre e apague seu nome: esse texto da Ariela K explodiu minha cabeça.
O ensaio do Ray Bradbudy está dentro do livro Zen na Arte da Escrita (Biblioteca Azul, 2020), que reúne textos do autor sobre o ato de escrever.
Sempre faço exames de sangue no início do ano para uma checagem básica. Descobri, para o choque de ninguém, que uma rotina maluca misturado ao consumo de alimentos de origem duvidosa e a completa falta de maturidade emocional para lidar com certos problemas fez com que os resultados viessem bastante alterados. Níveis de ferro, vitamina D, colesterol. Tudo uma loucura. Não demorou muito para que eu tentasse remediar tudo isso o mais rápido possível, resolver de uma vez para que eu não precisasse pensar em muita coisa. Então, logo me vi procurando suplementos vitamínicos, shots de imunidade, essas coisas todas que a internet nos vende como se fossem de verdade. Ainda bem que antes de desembolsar qualquer dinheiro em coisas sem recomendação médica, escutei o episódio A nova Onda dos Suplementos, do Prato Cheio - podcast do veículo O Joio e o Trigo. O episódio é do ano passado, mas discute exatamente sobre a não-necessidade de colocarmos certas coisas para dentro do nosso corpo só porque influenciadores dizem que é bom. Temos que lembrar que há uma indústria por trás de tudo isso. E que ela está lucrando com cada gominha artificial de fruta que nós ingerimos ao invés de irmos até o mercado.