Sempre considerei de um sem-gracismo desmedido quem deseja paz nas mensagens de aniversário para alguém. Em vários três de outubro, a cada felicitação, meu corpo se contorcia num malabarismo, tentando desviar dessa aura rebuscada e artificial quando as pessoas diziam: muita paz, muita paz, dando batidinhas ritmadas nas minhas costas. Eu achava uma frase meio insossa, sem sentido algum, um cumprimento de quem não sabe quantos presentes interessantes e graciosos o universo poderia dar em vez de uma mísera e simples paz de espírito.
Até que eu passei a desejar o mesmo.
Em dezembro, decidi fazer um limpa em algumas caixas da época da adolescência guardadas na casa da minha mãe, e encontrei um caderno com mensagens e recados escritos em tinta colorida durante meu aniversário de quinze anos. Meus amigos da mesma idade me desejavam viagens, amores, dinheiro, fama, sucesso, poder. Letras garrafais, destaques em amarelo, desenhos de coração e estrelas seguidos das mais sinceras felicitações, como se a forma enérgica de se desejar algo a alguém também fizesse diferença. Já os mais velhos, geralmente os amigos de família ou parentes distantes, tinham o mesmo estilo monótono: em canetas de tinta preta ou de um azul escuro, me desejavam muita saúde e paz. Eu era uma adolescente, pelo amor de Deus, e paz de espírito era uma virtude da qual eu não tinha e muito menos fazia questão. Mas, há um tempo que meus desejos mudaram.
Quero paz e um novo ano leve.
Não sei se faz parte do processo de crescimento pessoal ou do envelhecimento — um atestado de estar chegando a uma idade da vida em que não sinto estar crescendo, mas sim envelhecendo — mas paz tem sido um dos mantras diários. Pode ser um desejo ligado ao fato de ter sobrevivido a uma pandemia ou por fazer parte de uma geração em que há uma possibilidade iminente de uma guerra no Ocidente; mas ter paz é um dos votos que julgo mais importante para os próximos aniversários. Me desejem paz.
Minha mãe sempre disse que eu era uma pessoa cosmopolita demais, vivendo um ritmo acelerado demais, inconsistente demais, que eu nunca sobreviveria ao vender-arte-na-praia por mais que brincasse com a possibilidade de vez em quando. Não posso negar: sempre fui deslumbrada com arranha-céus, com as cidades que engolem as pessoas minúsculas, do frenesi das noites no trânsito, das pessoas pra lá e pra cá atravessando faixas de pedestres como numa boiada. Não sei dizer em que ponto essa visão mudou, e se houve esse momento de troca-de-chave, mas há um tempo em que desejo apenas uma paz meio interiorana, como num dos filmes em que o protagonista tem que voltar para a casa da família no interior do estado e lá descobre uma nova paixão por atividades manuais, fazer cerâmica e viver perto da natureza, descartando todas as possibilidades de princípio de infarto por causa de estresse.
De vez em quando, principalmente em tempos como esse, tão simbólicos sobre renovação e vida nova, volto a alguns textos-conforto. Alguns escritos de outras pessoas que salvei durante os anos e achei interessante — entrevistas, artigos, crônicas que gosto de revisitar para conferir minhas visões diferentes sobre as mesmas palavras só que lidas em épocas distintas da vida.
Um dos textos que salvei foi a entrevista do escritor e psicanalista Contardo Calligaris à Cláudia Online, em 2014, que só me deparei depois da morte dele sete anos depois. É uma conversa sobre felicidade e insatisfação; sobre desejos e euforias. Nela, Contardo diz uma das frases que coleciono dentro de mim: não quero ser feliz, quero ter uma vida interessante.
“Ter uma vida interessante significa viver plenamente. Isso pressupõe poder se desesperar quando fica sem alguma coisa que é muito importante pra você. É preciso sentir plenamente as dores: das perdas, do luto, do fracasso. Eu acho um tremendo desastre esse ideal de felicidade que tenta nos poupar de tudo o que é ruim”.
É possível que parte da minha identificação seja porque nunca me imaginei como uma pessoa realmente feliz. Tive uma infância e uma adolescência complicada (como a maioria das pessoas que conheço), então a felicidade nunca pareceu tão tangível assim. Não me entenda mal: eu adoraria me considerar uma pessoa feliz (tenho até amigos que são), mas desde que uma terapeuta me perguntou o que eu precisava para me tornar uma pessoa feliz, passei a me agarrar aos meus antigos e sábios conhecidos: aos adultos que me desejavam paz no meu aniversário. Me agarrei à paz.
A felicidade é um sentimento que anda em linha tênue demais, ora pendendo para o lado de alguma outra emoção e roubando o mérito para si. Euforia pode ser felicidade, o sentimento de realização pode ser felicidade, ter uma paixão correspondida pode ser felicidade. O que é felicidade, afinal? Ela é um sentimento por si só ou só existe na companhia de outra emoção?. Por isso, passei a preferir a paz. A paz é inegável: não depende de méritos alheios e pode ser tão estável que se torna inabalável. É possível estar triste e estar em paz, estar numa fase incerta e estar em paz. Ou estar alegre e estar em paz. Ela é inconfundível, certeira, e promove algo que nem sempre a felicidade nos traz: a sensação de bem-estar.
No fim das contas, quanto mais eu cresço (ou envelheço), menos tenho saído em busca da felicidade. É verdade que eu ainda gosto e persigo a sensação de euforia, das alegrias momentâneas, e do divertimento. Gosto de uma vida bem-humorada, não apática. Por isso, faço das palavras de Contardo às minhas: não quero ser feliz, quero ter uma vida interessante. Sentir as emoções que tiver que sentir, sejam boas ou ruins, e estar em paz com elas. Buscar paz não é apatia, pelo contrário, é calma, segurança. Enquanto a felicidade que tentamos tanto alcançar é inconstante demais. É insaciável.
Mais uma vez, vou roubar as palavras de Contardo:
“Ligamos felicidade à satisfação de desejos, o que é totalmente antinômico com o próprio funcionamento da nossa cultura, fundada na insatisfação. Nenhum objeto pode nos satisfazer plenamente. O fato de que você pode desejar muito um homem, uma mulher, um carro, um relógio, uma joia ou uma viagem não tem relevância. No dia em que você tiver aquele homem, aquela mulher, aquele carro, aquele relógio, aquela joia ou aquela viagem, se dará conta de que está na hora de desejar outra coisa. Esse mecanismo sustenta ao mesmo tempo um sistema econômico, o capitalismo moderno, e o nosso desejo, que não se esgota nunca. Então, costumo dizer que não quero ser feliz. Quero é ter uma vida interessante”
A paz é diferente. A paz de estar tranquilo com as escolhas feitas, a paz de saber que está num caminho, a paz de saber que a vida é impermanência mesmo — e dias tribulados virão. Por isso, gosto de desejar paz, como a boa adulta que sou, para as adolescentes de quinze anos. Porque daqui a algum tempo, elas vão crescer, vão desejar e vão se frustrar. Vão encarar a vida como ela magnificamente é: uns trechos longos que serão esquecidos como num passe de mágica, e momentos muitos fugazes de euforia que perderão a importância com o tempo. E espero que quando elas estiverem nesses períodos da vida em que nada acontece, ou nos dias nublados, elas se lembrem que felicidade é uma mistura de vários sentimentos diferentes, e é a paz que garante que tudo passa.
tem muita gente boa fazendo coisa por aí -
Você pode acessar aqui a entrevista completa com o Contardo para a Cláudia Online.
Durante o período de isolamento (sim, a covid finalmente me pegou depois de uma corrida maluca contra ela durante quase três anos), consegui terminar o primeiro livro do ano: Americanah, da Chimamanda Ngozi Adichie. Não sei porque demorei tanto para lê-lo, já que sou uma enorme fã. Com esse, completo a lista dos romances da Chimamanda que foram traduzidos para o Brasil, e acho que esse se tornou meu preferido. É extremamente arrebatador como a escritora fala sobre a questão da imigração, sobre se descobrir pertencente a uma raça, sobre a sensação de pertencimento, sobre cultura, sobre amor. Um livro bom nunca é sobre uma coisa só, assim como não seria nesse caso: o livro é sobre o Barack Obama e sobre os Estados Unidos; sobre sonhos, sobre primeiro amor, sobre deslumbramento, sobre publicidade, sobre racismo.
Uma série que comecei a ver foi Hacks, da HBO. Deborah Vance é uma comediante de muito sucesso que, aos 70 anos, está passando por um período em que ela se vê repetindo o mesmo material sempre. As mesmas piadas. Então, o agente de Deborah tem uma ideia de chamar outra cliente da agência para ajudá-la a renovar o stand-up: Ava, uma jovem comediante de 25 anos que recentemente foi cancelada pela internet e perdeu contratos por causa de uma piada que fez no Twitter. O que eu mais gostei da série não é apenas a questão geracional, como as piadas são diferentes uma para outra, como há um quê de moralismo na geração Z, e como as gerações anteriores também poderiam aprender muito ainda, mas os diálogos. Tão crus. Tão verdadeiros. Está na segunda temporada, e cada episódio tem só 30 minutos. É uma série leve, mas que aborda ótimas questões.
Acabei de chegar no Substack e esse foi o primeiro texto que me apareceu aleatoriamente, por acaso, por aqui. Que presente!!
Realmente, o que eu quero é viver uma vida interessante!
Cheguei aqui pela news da Vanessa e só queria dizer o quanto amei essa edição! Vou levar a frase de Contardo pra vida também, achei incrível. Parabéns por esse texto! :)