A poucos metros da casa onde morei durante vinte anos, entre minha infância e juventude, havia uma senhorinha realmente terrível. Éramos crianças arruaceiras com todos os motivos para odiar alguém como detestávamos a senhora da 36 — uma idosa ranzinza que se deleitava ao xingar nosso grupo todas as vezes que subíamos no pé de tamarindo na calçada em frente à casa dela. Aproximar-se da árvore, pendurar-se em seus galhos e roubar seus frutos era proibido mesmo que o pé estivesse, bem, em área pública. E nós, como crianças sem filtro e preenchidas por tédio, nos rebelávamos contra as propriedades privadas do estado, numa clara insurreição anticapitalista que privatizava árvores e frutos públicos. Chegava a ser uma cena performática: ultrapassávamos a mini cerca branca que protegia o tamarindeiro, e a velha saía de casa no mesmo minuto, farejando nossos passos e segurando nas mãos um cabo de vassoura, aos xingamentos e ameaças, pronta para o ataque. Descíamos, ríamos, saíamos correndo. Nunca pegávamos um só fruto. Eu sempre odiei tamarindos.
A Dona Maria, vamos chamá-la assim já que não lembro do nome, era uma senhorinha solitária, ranzinza e irritadiça, que não botava os pés para fora de casa a não ser para reclamar dos pivetes destruidores de galhos e folhas, que insistiam em escalar o que Maria mais amava: a porra do pé de tamarindo. Ela morreu um pouco antes de eu me mudar, quase quinze anos depois de crescermos e não subirmos mais em árvore alguma. Não sei qual foi a última vez que a vi. Talvez tenha sido em um dia de férias, quando o grupo de crianças ainda existia, e ainda ultrapassávamos limites, e ela ainda tinha que lidar com esse tipo de coisa, indo até a calçada para proteger o bem-amado. Não lembro de tê-la visto um dia sequer quando eu já era crescida. E apesar de tê-la ouvido gritar inúmeras vezes, não me lembro da sua voz.
Maria deixou o marido e um filho já adulto que eu só cheguei a conhecer depois do enterro. Poucas semanas depois do velório, o filho apareceu na rua, trocou uma papelada e mandou derrubar o pé de tamarindo. O viúvo nem questionou. Todas as vezes que passo pela rua agora, encaro aquele toco de árvore cortada, uma coisinha esquisita no meio de uma calçada, sem cerca nenhuma em volta, algo que parece incompleto, sem crescer, sem podar. Apenas uma madeira redonda inservível, sem sombra, nem fruto. Achei tudo de um simbolismo danado.
De tempos em tempos, sempre volta ao meu feed ou me aparece de alguma forma aquele texto que diz: Growing up, I never knew a relaxed women. Todas as vezes que leio essa frase em algum lugar, sempre me passa um complemento, algo que eu adicionaria a isso: Crescendo, eu nunca conheci uma mulher feliz.
Quando penso em mulheres, lembro dessa idosa vizinha, e de mais um bando de gente. Talvez seja até um pedantismo de minha parte cravar que a mulher não era feliz, já que não a conhecia além do meu olhar de criança. Mas, uma figura alheia à rua, alheia ao mundo, que só se dirigia ao lado de fora para brigar com crianças implicantes, e nada mais, não me parece ser o tipo de vivência que desejaríamos para nós mesmo. Ela não parecia feliz, e para ser sincera, quando tento me lembrar das mulheres que estiveram na minha infância, comecei a questionar: quem parecia feliz?
Lembro da primeira página de Afetos Ferozes, da Vivian Gornick (Todavia, 2019):
“Havia vinte apartamentos, quatro por andar, e na minha memória era um edifício cheio de mulheres. Mal me lembro dos homens. Eles estavam por toda parte, lógico — maridos, pais, irmãos —, mas só me lembro das mulheres. E na minha memória todas são rudes como a sra. Drucker ou ferozes como minha mãe. Elas nunca falavam como se soubessem quem eram ou entendessem o acordo que haviam feito com a vida, mas eram comum que agissem como se soubessem”.
Todas as figuras femininas que me lembro enquanto criança são ferozes, estressadas, ácidas, e nem um pouco relaxadas. Algumas delas cristãs. Todas solitárias a seu próprio modo. Vizinhas, tias, lojistas da praça a qual eu frequentava, babás, amigas de família. É como se a vida fosse um eterno descontentamento, causado por tantas coisas das quais, hoje, eu já posso elencar. Ou pelo menos, posso entender melhor. Consigo também ver os motivos que eu não observava antes, ou não encontrava quando criança, mas adulta, parece mais claro, mais óbvio, ainda que eu não tenha contato com elas agora. Ainda que muitas já tenham morrido. Ainda que nenhuma delas tenham me explicado ou dito alguma coisa. De certa forma, eu entendo.
Hoje, é claro, consigo encontrar com maior frequência as mulheres realizadas, as mulheres que decidiram ir em busca da própria felicidade ainda que com contradições, mas naquela época? Se você fizer um esforço: quantas mulheres alegres conheceu enquanto crescia? Daquelas mulheres que gostavam de rir, conversar, felizes em seu próprio modo, espontâneas ou festeiras? As mulheres com as quais eu convivo hoje não são as figuras com as quais eu acostumei enquanto crescia.
De certa forma, as mulheres que eu convivi, pareciam anular a própria existência em prol do alheio: casa, filhos, marido, parentes. Foram se diminuindo até não ocuparem mais espaço algum. Não atrapalhavam. Resolviam. Cuidavam do mundo, mas nunca de si. Não havia sonhos, planos que ultrapassassem os dias seguintes. Nem projetos de vida que se estendiam ao longo dos anos. Tampouco eram apaixonadas por viver.
Ainda que, agora, eu tenha outras referências a qual me espelhar, as mulheres que conheci existem e seguem por aí ocupando pequenos espaços, tentando caber sem atrapalhar. Reagindo ao mundo em vez de inventar. Encolhendo-se em lugares, em si própria, negando a rua, desiludindo as próprias vontades. Elas seguem vivendo nesses universos em que não há relaxamentos, nem momentos para felicidades envolvidas em processo. Seguem vivas pela automatização da vida, porque é isso que se faz, é assim que se continua. Solitárias. Eu as vejo em várias versões. Estão lá, vivendo à margem do mundo. E quando se vão, as árvores são arrancadas com elas — como que para provar que nunca estiveram ali.
Vocês sabem, quando a newsletter sai no domingo, alguma coisa durante a semana me atropelou. Mas, espero que essa edição ainda te acompanhe com um bom café. Me diz o que achou? Gosto de pensar em quais realidades as pessoas cresceram. Será que conheceram mulheres felizes? Tinham essa referência enquanto eram crianças? Eu realmente nunca tive. Mas, como eu falei, agora eu tenho em quem me inspirar. Espero que minha geração de mulheres, ainda que sejamos a geração mais ansiosa e depressiva, tenhamos com quem contar. E que nunca cortem nossas árvores. Que possamos existir, além das infelicidades. Difícil também pensar e não carregar a culpa de sair desse lugar onde vi tantas ficarem. Mas a gente vai tentando entender. E quem sabe tentando mudar essa construção futura, esperando que, um dia, vejamos sempre mulheres felizes.
Um beijo, te encontro na próxima!
Comecei a ler sem pretensão Você não vai dizer nada, da Julia Codo (Nós, 2021), e não é que me cativou por completo? Ainda não terminei, mas o livro de contos traz cenas marcantes, corriqueiras e muitas vezes com bom humor e peculiaridade. Estou amando e está disponível no BibliOn.
Falei aqui na newsletter passada do curso da Literária sobre Mulheres que escrevem NY, e aí eles me surgem com outro curso incrível! Literatura e Psicanálise, que começa no dia 08.
Amei essa edição do
:Se você gosta dessa newsletter, considere enviá-la para alguém. Assim você faz com que eu chegue a outros leitores. Obrigada pela companhia!
Deborah, seu texto me lembrou da relação com a minha mãe quando eu era criança. Eu vivia preocupada em fazer a coisa certa, seguir todas as regras ditadas por ela. Atualmente, como você, entendo melhor minha mãe e outras mulheres com quem cresci. Mesmo assim, ainda me entristece pensar como nós muitas vezes "treinamos" novas gerações de mulheres tensas para caberem nas forminhas socialmente aceitáveis. Tento ser e espero que a cada geração possamos estar mais relaxadas.
Adorei o texto e ter descoberto com ele o tal projeto/news The Relaxed Woman, da nicola jane! Caí de paraquedas aqui e amarrou sincronicamente com a pauta do meu dia em terapia: quero escolher meus próprios luxos - e ter uma vida com tempo e tranquilidade é o maior deles.
Parando pra pensar, tive a sorte de crescer com algumas mulheres divertidas e alegres ao meu lado. Minha mãe me ensinou sobre festejar e compartilhar a vida, junto às suas amigas com mais de 30 anos de amizade... elas são festeiras, engraçadas, bocudas e amam ficar de bobeira. Engraçado, eu nunca tinha refletido direito sobre isso! Que massa é perceber.
Mas a vida não é um morango e assisti com o passar do tempo essas mesmas mulheres endurecerem, rirem com mais dificuldade, trazerem trabalho pro lugar de descanso. Enfim, hoje exercito a atenção pra não deixar de trazer pequenas doçuras pro dia a dia, que me aliviem a dureza que pode ser estar aqui enquanto mulher.