Há versões de nós que perdem os rastros com o tempo, como se nunca tivessem existido, embora nos lembremos delas. Na aula de yoga, noutro dia, encontrei uma colega da época da escola. Jogamos juntas no mesmo time de vôlei, compartilhamos espaços, roupas, machucados e as mesmas dores nos punhos dos primeiros treinos — algo relevante, mas não o suficiente para nos tornarmos amigas.
Joguei vôlei durante anos e realmente fui boa. Cheguei a ter que pedir autorizações para participar de campeonatos junto ao time porque era era muito nova e, por um tempo, não aceitavam o meu ano de nascimento nas ligas e competições. Fui a levantadora titular da equipe, uma posição conquistada após ter sido um grande fracasso como atacante e, tudo bem, era aliviante a sensação de ter encontrado um lugar.
Minha curta vida de atleta terminou depois de um problema no joelho, quando o ortopedista indicado para tratar o problema cravou que eu não poderia mais jogar vôlei, andar de bicicleta, muito menos correr ou fazer outros tipos de esportes de alto impacto (uma decisão bem criticada pelo meu ortopedista atual, que apenas recomendou musculação em paralelo a outras atividades, mas isso é assunto para outro momento).
Custo a lembrar detalhes desses anos porque não há ninguém que me recorde desse momento da minha vida. Perdi os troféus e as medalhas em mudanças, não levei nenhuma amiga comigo e, se não fosse pelas fotos que minha mãe guarda como recordação com meu uniforme (o número 3), desconfiaria que tudo não passou de um delírio. Pois bem.
Enquanto eu e minha antiga colega pegávamos o elevador após esse reencontro inesperado, vasculhando assuntos para mantermos um diálogo em seis andares que evitasse o desconforto do silêncio, ela me perguntou: “E como vai X? Ainda tem contato com ele?”. Um questionamento que me empurrou para um buraco . Tive a sensação de estarmos em queda livre. “Não”, respondi. “Faz muito tempo que nem ouço esse nome”.
No início da adolescência, quando nossos corpos nem são nossos corpos ainda, e nossos pensamentos estão tão aflitos pela transformação dos nossos peitos, pele e altura, fui uma menina apaixonada pelo X. Não que isso fosse segredo para alguém, nem mesmo para essa colega. Mas, foi um nome e uma pessoa que se perdeu, como muitos surgiram e se perderam desde então, nesse lugar do amor construído enquanto viramos gente. Esqueci, é claro. Muita coisa aconteceu desde então, amores diferentes, melhores, piores, e essa paixão que, um dia, pareceu tão eterna se tornou uma fuligem em meio ao céu — uma lembrança disforme.
Não tenho amigos de infância. A maioria dos meus amigos conheci na época da faculdade ou no trabalho. São meus amigos de estrada, de vida, de tudo, mas, fatalmente, ninguém sabe do X. Não conhecem suas histórias, quem ele é, foto, ou situações que compartilhei com diários e amigas da adolescência cujo contato perdi. Meus amigos sabem outros nomes, outras vivências, de quando eu já era alguém mais parecida com quem sou agora. Eles não conheceram a história do X nem a jogadora mirim de vôlei e cabelos com mechas rosas que era apaixonada por ele. Essa versão de mim morreu. Ou pareceu morrer. Apenas eu enxergo os rastros que ela deixou.
Há versões de nós carregadas por outras pessoas, e conforme perdemos o contato, parece que essas versões vão desaparecendo em conjunto. Minhas amigas do vôlei, por exemplo, se ainda lembram de mim, recordam uma versão da Deborah que não existe mais. Para elas, parei no tempo, não me conhecem. Não mais.
Por outro lado, meus amigos de agora, não conhecem as versões que eu fui, nem sabem como a jogadora de vôlei foi importante para construir a pessoa que me tornei — o que eu mudei ou mantive só eu sei. Versões que deixaram de existir, mas não são menos reais. Em uma realidade paralela, ou em um campo emocional, muitas vezes, eu ainda me sinto como aquela mesma menina com as joelheiras, a perna esquerda em frente ao corpo, esperando o saque adversário. Os mesmos medos. As mesmas aflições. Os mesmos desejos.
No dia a dia, são Deborahs que não fazem mais sentido existir, ou Deborahs que se transformaram, mas que estão lá, ou melhor, estiveram, viveram, morreram, e ressurgem, às vezes, quando encontramos alguém no elevador. Versões de mim enterradas em cápsulas do tempo desenterradas por quem as conheceu.
Nesses momentos, lembro das histórias esquecidas, desses dias vividos, como que para dizer a mim mesma: ei, você não nasceu ontem, olha quanta coisa já aconteceu. Talvez não carregue mais comigo tanto dessa menina apaixonada, mas quantas versões de mim não carrego ainda hoje?
Tudo o que resta são as lembranças-fuligens, que embaçam a visão quando as encaro por muito tempo, e que voam sob a minha cabeça. Estão lá. Não perto o bastante para entrarem no meu campo de visão, mas o suficiente para alcançá-las quando estico a mão, apenas para ter a certeza de que ainda existem e caminham comigo. De vez em quando, é bom lembrar.
Uma das coisas mais bonitas que eu li recentemente é o livro Ferozes Melancolias, da Ana Rüsche. Poderia dizer que fala sobre escrever e os percalços por entre viagens e pandemia. Mas, acho que fala sobre a vida mesmo — escrita, luto, luta. Digo luta porque a Ana faz doutorado na UnB em literatura sobre antropoceno, mas o capítulo final mostra que não é apenas pesquisa o trabalho dela, mas ativismo sobre sonhar e acreditar. Vou trazer um parágrafo que me tocou bastante:
“No fundo, o sistema quer de nós justamente uma imobilidade do ‘não é possível mudar’. Isso já estava no veneno das palavras da Margareth Thatcher, ‘não há outra alternativa’ (ou seja, somente o caminho do neoliberalismo). A literatura, apesar de parecer inócua, tem um papel relevante nessa conversa. Mostrar que sempre há alternativas. No início, imaginárias, fantasiosas. Mas é a partir do sonho e da fantasia que tecemos nossa realidade. Nunca faz mal praticar o otimismo do impossível. É o que nos retira do estado de paralisia diante da catástrofe” (pg.97).
Tenho visto mais filmes brasileiros por causa dos estudos em cinema que comentei na última newsletter. Assisti “Motel Destino” nos cinemas e saí maravilhada. Bem escrito, bem produzido, bem filmado, excelentes atores. A fotografia é impecável. Se não estava na sua lista, veja! E não preciso dizer nada que estou ansiosa para a estreia de “Ainda estou aqui”, né?
Outro filme que estou ansiosa para ver é o A Substância. Minha expectativa aumentou depois do texto da
: existir pelo corpo.E por último, temos novo vídeo!!! é o vídeo do mês, falando um pouco sobre como buscar referências e inspirações para escrever. Um projeto que tem andado a passos lentos, mas que ainda me deixa bastante empolgada. Obrigada pelo apoio <3
E é isso, gostou de algum texto meu? não esquece de compartilhar ele com alguém para chegar a mais gente!! obrigada pela companhia de sempre.
Parabéns por ter encontrado o tamanho perfeito de parágrafo para textos online! \○/
"Versões de mim enterradas em cápsulas do tempo desenterradas por quem as conheceu." Que coisa mais linda de ler! Obrigada pelo texto e pela reflexão. Aproveito para te deixar uma música que fala exatamente sobre isso. "Descobri outra de mim" - https://open.spotify.com/intl-pt/album/6znUGFKOSYTq1QDsYwIs9E?si=ehHAo9XeRnGYxWBBPiGXwA